Lagunas costeiras: ambientes em evolução
Freitas, Maria da Conceição
Comunicação apresentada no "Seminário sobre lagunas costeiras e ilhas-barreira da zona costeira de Portugal", Associação Eurocoast de Portugal, Aveiro, Outubro de 1996.

Resumo:

Lagunas costeiras são zonas deprimidas, abaixo do nível médio de preia-mar de águas vivas, com comunicação efémera ou permanente com o mar, do qual estão protegidas por um tipo qualquer de barreira. Apesar de grande parte das lagunas se posicionar com o eixo maior paralelo ao litoral, nos locais onde vales fluviais foram inundados como consequência da subida do nível do mar durante o Holocénico ou onde pequenos estuários foram bloqueados por pequenas barreiras, elas situam-se perpendicularmente ou obliquamente à linha de costa.

As lagunas costeiras ocupam 13% do litoral mundial, distribuindo-se desde as zonas tropicais até aos pólos, essencialmente em regiões microtidais e mesotidais. Na Europa, apenas 5% do litoral se insere nesta categoria, sendo o continente com menor proporção de lagunas costeiras. No litoral português, com uma extensão de aproximadamente 800 Km, muito diversificado em termos morfológicos, podemos salientar as lagunas costeiras localmente conhecidas como: Barrinha de Esmoriz, Ria de Aveiro, Concha de S. Martinho do Porto, Lagoa de Óbidos, Lagoa de Albufeira, Lagoa de Melides, Lagoa de Sto André, Ria de Alvor e Ria Formosa. O Quadro I resume algumas das características fisiográficas destes ambientes lagunares, as quais, como se pode observar, são bastante variadas.

As lagunas costeiras são ambientes em constante evolução natural. É de consenso geral que a maioria das lagunas actuais tiveram origem em estuários ou planícies costeiras formadas durante a transgressão flandriana ou seja, a subida generalizada do nível do mar desde -140m-120m há 18000 anos atrás até à cota actual atingida há aproximadamente 3000-5000. É o caso das lagunas de Óbidos, Albufeira, Melides e Santo André. O estado lagunar (através da criação de uma barreira por deriva litoral) ter-se-á definido há 5000-7000 anos atrás, quando a velocidade de subida do nível do mar diminuiu. Efectivamente, durante as fases trangressivas, o desenvolvimento de uma barreira na zona de embocadura dos estuários apenas é possível se a taxa de sedimentação fôr superior à taxa de subida do nível do mar; para que isso realmente aconteça, são necessárias fases de relativa estabilidade do nível marinho ou mesmo pequenas regressões. Uma vez formadas, as barreiras mantém-se, mesmo em regime transgressivo, se as quantidades de materiais disponíveis forem suficientes para que o balanço mantenha um valor positivo, podendo ocorrer migração destas para terra.

Quadro I - Características fisiográficas das principais lagunas do litoral português

Laguna
Área da bacia hidrográfica (km2)
Área da laguna (km2)
Profundidade máxima aproximada (m)
Situação da(s) barra(s)
Esmoriz
74
0.9
2
uma barra arenosa, completamente fechada, a qual é aberta artificialmente e assim permanece durante algum tempo (a)
Aveiro
3109 (b)
115 (b)
10 - 12 (b)
uma barra arenosa, aberta, fixada artificialmente por estruturas rígidas (b)
S. Martinho do Porto
0.8
2.3
uma barra rochosa, aberta
Óbidos
440
6
4.5
uma barra arenosa, completamente fechada, a qual é aberta artificialmente e assim permanece durante algum tempo
Albufeira
106
1.6
>15
uma barra arenosa, completamente fechada, a qual é aberta artificialmente e assim permanece durante algum tempo
Melides
56
0.4
2
uma barra arenosa, completamente fechada, a qual é aberta artificialmente e assim permanece durante algum tempo
Santo André
140 (e)
2.3 (e)
2.5 (e)
uma barra arenosa, completamente fechada, a qual é aberta artificialmente e assim permanece durante algum tempo
Alvor
250 (e)
4
-
uma barra arenosa, aberta, fixada artificialmente por estruturas rígidas
Ria Formosa
740 (e)
84 (d)
5 - 7 (d)
6 barras arenosas, abertas, das quais duas estão fixadas artificialmente por estruturas rígidas (d)

(a) Prates et al. (1989); (b) Teixeira (1994); (c) Cabral et al. (1989); (d) Andrade (1990); (e) Matos (1991)

Os estudos existentes acerca da evolução holocénica dos sistemas lagunares do litoral português são escassos. Em relação às lagunas de Albufeira, Melides e Santo André, podem citar-se os trabalhos de Queiroz & Mateus (1994), Queiroz (1984, 1985, 1989) e Mateus (1985, 1989, 1992) de índole palinológica e Freitas et al. (1993), Andrade & Freitas (1993), Freitas & Andrade (1995 b) e Freitas (1995), de índole sedimentológica. Neles se faz referência à existência da barreira desde 7000 BP e ao fecho completo desta de modo a isolar completamente a laguna do oceano desde pelo menos cerca de 5000 BP.

Uma vez formados, o comportamento evolutivo dos sistemas lagunares é fortemente condicionado pela variação dos níveis do mar e pela quantidade de sedimentos disponíveis, a qual é responsável não só pelo assoreamento na laguna como pela evolução da barreira.

A evolução das lagunas dá-se, pois, no sentido do assoreamento destes ambientes e da sua redução quer em termos de área ocupada quer em termos de profundidade. E assim, actualmente, temos exemplos de lagunas em diferentes graus de evolução, desde sistemas de dimensões apreciáveis até lagunas completamente assoreadas. No que diz respeito às lagunas de Óbidos, Albufeira, Melides e Sto André, estas ocupam extensões muito reduzidas, menores que 6 km2 e exibiriam naturalmente (à excepção da Lagoa de Albufeira) profundidades médias inferiores a 2m. As respectivas barreiras só permitiriam trocas de água doce-água salgada quando a sobreposição das condições hidrológicas e do estado do mar permitissem naturalmente a abertura de uma barra.

A origem dos sedimentos que colmatam as lagunas é diversa, provindo estes essencialmente de três fontes principais:

- uma fonte marinha, entrando os materiais na laguna essencialmente através da barra de maré e por episódios de galgamento; os sedimentos com esta origem, ficam restritos às proximidades da embocadura sob a forma de deltas de enchente activos ou bancos de areia que derivam de deltas de enchente desactivados e de porções distais de depósitos de galgamento. Como as lagunas de Óbidos, Albufeira, Melides e Santo André têm dominância de enchente (ou seja, a duração da enchente é inferior à da vasante e por isso a sua velocidade é maior), esta tem maior capacidade de transporte e os sedimentos, uma vez veiculados através do canal para o interior da laguna, só em parte voltarão a sair, tendo como consequência o assoreamento;

- uma fonte continental, através da descarga das linhas de água que drenam as lagunas, da erosão e escorrência directa das margens e do transporte eólico; os materiais mais grosseiros depositam-se em leques aluviais na foz das ribeiras e nas margens lagunares, sendo os materiais mais finos transportados em suspensão e depositados a maiores profundidades; obtém-se, assim, uma organização sedimentológica de forma concêntrica, com os materiais essencialmente arenosos na zona da embocadura lagunar e nas margens e os sedimentos essencialmente vasosos nas zonas centrais, mais profundas;

- uma última fonte deriva da actividade química e biológica da laguna; este tipo de sedimentos formam-se por precipitação química, tais como carbonatos e evaporitos ou pela acumulação de matéria orgânica.

Trabalhos de índole morfossedimentológica sobre sistemas lagunares portugueses, são citados na bibliografia (ver Referências Bibliográficas).

De forma natural, as lagunas costeiras, mais ou menos rapidamente, transformar-se-iam em pântanos, se a mesma tendência de subida eustática e regime sedimentar se mantiver. No entanto, a intervenção antrópica, que por um lado acelera o processo de assoreamento através de intervenções na bacia hidrográfica que conduzem a uma maior produção de sedimentos (desflorestações, por exemplo), por outro inverte a situação ao intervir nas lagunas através de dragagens efectuadas para aumentar a sua profundidade, prolongando a sua vida. E assim, a colmatação total das áreas lagunares, destino último de todas elas, vai sendo adiada. Nas Lagoas de Óbidos, Albufeira, Melides e Sto André, a barra é aberta, em regra com periodicidade anual, por meios artificiais, pelo menos desde o século XIV, com a finalidade de renovar as águas interiores e drenar os campos próximos para serem utilizados na agricultura. A influência humana pode alterar inclusivamente de forma significativa a paisagem original, com a construção de marinas, portos, pisciculturas.

As lagunas costeiras, sistemas de transição entre os domínios oceânico e terrestre, são ambientes complexos pela multitude de factores aí actantes e interdependência entre eles. Inegavelmente consideradas áreas de grande riqueza económica e de valor social e ecológico notável, têm sido, nos últimos anos, alvo de preocupações crescentes quer por parte das autoridades locais, quer por parte das organizações ambientalistas, quer por parte da comunidade científica. No entanto, as soluções encontradas para os diversos problemas que enfrentam, nem sempre são as mais adequadas porque raramente bem fundamentadas em estudos especializados. A conscencialização de que as potencialidades destes ambientes apenas podem ser correctamente avaliadas e utilizadas com um conhecimento profundo não só dos processos actuais que aí operam mas igualmente do seu comportamento evolutivo, tem conduzido a um interesse crescente por estas áreas, que esperamos se intensifique no futuro imediato.

 

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